Por Rafael Santos
Constantes mudanças estão ocorrendo em nossa sociedade nas últimas décadas, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Áreas como filosofia, artes, cultura, tecnologia têm sofrido transformações acentuadas. Obviamente, a igreja, sobretudo em sua razão de existir, não escaparia a tais mudanças. Teólogos discutem como enfrentar o tsunami de desafios trazidos pelo cenário atual embriagado pelo pós-modernismo. Como discipular pessoas de uma sociedade que rejeita absolutos? O que fazer para desconstruir o conforto ilusório que o relativismo traz em sua bagagem? Como discipular os “discipulados”, isto é, os que já são cristãos?
O olhar preocupado da igreja para os desafios a ela postos não é sem razão. O pós-modernismo é visto como um grande desafio para o avanço do cristianismo, especialmente pelas questões levantadas no parágrafo anterior: o relativismo epistemológico e a pluralização religiosa.[1] Diante dessa realidade, propomos nesse texto uma breve olhada ao passado, no qual constataremos que desafios “insuperáveis” sempre acompanharam a missão da igreja; verificaremos se o cenário proposto pelo pós-modernismo também oferta oportunidades e, veremos os meios para o discipulado que podem ser usados com o objetivo de superar o paradigma corrente.
Olhando pelo retrovisor
Os primeiros cristãos encontraram grandes desafios para cumprirem a Grande Comissão. Podemos destacar como barreira no contexto político-sócio-cultural “o mau prestígio recíproco entre judeus e romanos”[2] e os “tumultos e desordens”[3] que acompanhavam os pregadores cristãos (ver, por exemplo, At 16:16-23, 17:1-5, 19:23-41). No âmbito religioso, notamos várias opções ofertadas pelas nações aos seus povos, o que certamente poderia ser um estorvo ao nascimento e avanço do cristianismo, afinal, de alguma maneira, muitos já eram religiosos.
A perseguição foi outro fator limitador naquele período. Tão logo os primeiros conversos foram notados, tanto fariseus como saduceus começaram a agir. Eles perceberam que, se permanecessem como meros expectadores dos apóstolos, a influência deles – dos fariseus e saduceus – “estaria em maior perigo do que quando Jesus estivera pregando”.[4] Por isso, Ellen White definiu Jerusalém como “O mais duro campo, o menos prometedor”.[5]
Esses e outros exemplos ratificam que o evangelho, desde os primórdios da era cristã, encontrou obstruções, seja na esfera política, social, religiosa, ou cultural. A despeito dessas e das dificuldades agregadas na atualidade, a Grande Comissão do Mestre continua em modo imperativo na pós-modernidade: façam discípulos!
O antecessor do pós-modernismo
Para entendermos melhor as bases do paradigma pós-modernista talvez precisemos olhar rapidamente para seu contexto mais amplo, especificamente para o paradigma que o antecedeu. Foi o modernismo que pavimentou o caminho para o momento atual. Nessa primeira corrente filosófico-ideológica que influenciava o modo de ser, pensar e agir, as metanarrativas cerravam as portas de maneira sistemática para a alteridade e diversidade, buscando a unificação da visão.[6] Essas metanarrativas fomentaram o apego às verdades absolutas na forma de ideologias abrangentes pretendendo unificar a todos de maneira coerciva, independentemente de cor, credo, raça ou cultura.[7] Infelizmente, esse pensamento foi acariciado no ambiente religioso também.
Nasce o pós-modernismo
O pós-modernismo nasceu em reação a esse pensamento. Essas ideologias abrangentes, verdades universais e coercivas do modernismo, culminaram em violência, intolerância e morte. Auschwitz e suas câmaras de gás exemplificam tragicamente o poder destrutivo desse modo de pensar e agir. As verdades absolutas foram rejeitadas na pós-modernidade abrindo espaço para o relativismo. A mente individual recebeu uma carta de alforria e cada um ficou livre para criar a sua própria verdade. As instituições passaram a ser questionadas. Cada um passou a escolher o melhor para si sem interferência externa, e qualquer que fosse a escolha, ela sempre estaria correta. O pluralismo religioso foi abraçado e a religião foi popularizada no sentido da diversidade de culto, maneiras, formas e objetos de adoração.
Pós-modernismo: uma oportunidade?
É nesse background que os desafios estão postos hoje. Friamente olhando para esse cenário avistamos sérios problemas para o avanço evangelístico. Como falar de verdade absoluta para essa geração? Como apresentar um único caminho de salvação? A despeito disso, a igreja poderia olhar para esse cenário desafiador e vislumbrar oportunidades também?
Os exemplos citados anteriormente evidenciam que os obstáculos sempre concorreram com o avanço da igreja cristã. Já os desafios modernos se apresentam com uma roupagem diferente. No entanto, vemos no estrago deixado pelo modernismo não apenas barreiras, mas também oportunidades para o discipulado. O detalhe fica por conta de que, uma vez que o cenário sociocultural mudou, a abordagem da igreja precisa mudar para atender a exigência imposta. O imperativo ao discipulado deve buscar “novas” alternativas[8] para obter êxito na atualidade.
Propomos olhar para os desafios estabelecidos pela pós-modernidade como apelos para o retorno ao discipulado bíblico. É necessário olhar o paradigma existente, entendê-lo, preservar o princípio que temos e buscar adequar o método à realidade para superar esse paradigma cumprindo assim a ordem do Mestre. A questão é se de fato, a abordagem evangelística adventista tem se ajustado a demanda pós-moderna.[9]
Oportunidades e meios para o discipulado
Vazio espiritual. Esse grande problema da humanidade não pode ser resolvido filosoficamente, pela arte, cultura ou tecnologia. O meio acadêmico por sua vez também é irrelevante e ineficiente na busca por uma solução. A pós-modernidade não trouxe em sua bagagem uma “cura” para isso. Sendo assim, somente Deus, que “pôs a eternidade no coração do homem” (Ec 3:11), pode suprir esse vazio. Isso não muda com o tempo. Os seres humanos continuam sendo seres humanos. Suas lutas, suas fraquezas, seus medos são lacunas que somente podem ser satisfatoriamente preenchidas pelo evangelho eterno. As diversões, distrações e prazeres propostos pelo “mundo” são apenas paliativos ineficientes no preenchimento desse hiato.
Um ótimo meio para atender essa demanda espiritual e emocional são os relacionamentos. “Os relacionamentos serão a oportunidade de Deus tocar o coração do ‘perdido’ com o Seu amor”.[10] Numa sociedade em que há desconfiança nas instituições, inclusive religiosas, uma aproximação focando apenas a cognição como meio de discipulado se assemelha muito à proposta modernista de padronização e pretensão de se estabelecer verdades absolutas. Essa abordagem será mais facilmente rejeitada no contexto pós-modernista, por isso, “A ênfase que se dava à doutrinação por meio de estudos bíblicos precisa ser transferida aos relacionamentos”.[11]
Destacamos o ambiente relacional proporcionado pelos pequenos grupos como propício para o discipulado, cuidado e apoio mútuo, uma vez que, “novos cristãos entram na comunidade cristã com conflitos não resolvidos e padrões relacionais doentios.”[12] Ao serem acolhidos, “Os conversos trarão outras pessoas para o pequeno grupo a fim de serem cuidadas como elas foram.”[13] Essa estrutura favorece também o desenvolvimento dos dons espirituais, que convergem para atender as necessidades das pessoas. A rede de relacionamentos proporcionada pelos pequenos grupos atua tanto como meio de atração como de retenção de novos discípulos a partir de uma demanda não atendida pela realidade pós-moderna.
Basta relembrar o método de aproximação usado por Cristo para respaldar o relacionamento como meio eficaz de discipulado. Ele se misturava com as pessoas, mostrava simpatia, atendia suas necessidades, ganhava a confiança, e as convidava para segui-Lo[14]. Com isso o Mestre deixou o exemplo para que Seus discípulos fizessem o mesmo.
Abigail Doukham[15], sugere outro meio para comunicação eficaz da verdade nessa era. Em sua opinião, o storytelling, isto é, a capacidade de contar histórias relevantes, seria uma alternativa para driblar os efeitos funestos das metanarrativas modernistas e tentar dialogar com os pós-modernos. Identificando o texto bíblico como mais semelhante do storytelling[16] ela defende que essa abordagem não se propõe a ser universal, coerciva nem simplista como as metanarrativas. No lugar da imposição de uma salvação universal, o storytelling vai propor uma salvação particular, individual. Doukham ainda defende que a “pluralidade de relacionamentos e experiências com Deus que são tão diversas que acabam por apelar à diversidade de interlocutores”.[17]
Desta forma, o pluralismo e diversidade tão almejados pelo paradigma atual são atendidos de maneira não coerciva, pois, as histórias são simplesmente contadas terceirizando a conversão ao Espírito Santo. Finalmente, as histórias bíblicas não são simplistas. Suas narrativas não se propõem a esconder falhas, dúvidas e fraquezas de seus personagens. O custo do evangelho não foi maquiado. Isso pode ser atraente para os pós-modernos no sentido de que eles rejeitam tudo que seja por atacado, aplicado de modo único, e preferem algo mais realista e autêntico em detrimento da pregação “modernista de futuro brilhante”.[18] O evangelho pode então ser comunicado sem a aversão que o formato modernista causa.
Já para a pluralidade religiosa existente atualmente, destacamos que ela não é tão nova assim. Isso pode ser visto no cenário de idolatria encontrado pelos primeiros cristãos, como já citamos. Naquele contexto existia um vazio espiritual deixado nos povos subjugados por Roma, que não foi preenchido pelas religiões de então.[19] “Além disso, os substitutos que Roma tinha a oferecer em lugar das religiões perdidas nada mais podiam fazer além de levar os povos a compreenderem sua necessidade de uma religião mais espiritual”.[20]Assim sendo, a mensagem dos apóstolos preenchia as necessidades do povo daquela época.
Ao invés de olharmos para a oferta do mercado religioso atual como um empecilho ao discipulado, podemos encarar essa realidade numa perspectiva otimista em virtude de sua possibilidade discipuladora. Elencamos pelo menos duas razões para isso. Primeira, a ênfase dada no aqui e agora por meio da teologia ou teoria da prosperidade, das promessas de cura e libertação, enche os olhos de imediato, porém não supre as reais necessidades espirituais das pessoas. Ainda há uma carência de algo mais sólido naqueles que estão vivendo nesse meio. É nesse vácuo que o evangelho eterno pode entrar poderosamente.
Analisando os batismos do último quinquênio (2013-2017), que realizei, constatamos que 31% dos batizados vieram de outras denominações. Isso pode convergir para a ratificação de que esse pluralismo de alguma maneira não é um problema em si.
Segunda, não podemos desconsiderar que Jesus chama essas ovelhas, pertencentes a outros apriscos, de Suas ovelhas, que ouvirão Sua voz e serão reunidas por Ele até a colheita final (Jo 10:16). Elas estão esperando serem discipuladas. Há um campo fértil a ser explorado. Até porque, o secularismo não acabou como o pluralismo religioso pode fazer parecer. Ele só vestiu uma capa de religiosidade, uma vez que, para muitas denominações nenhuma mudança comportamental significativa é exigida do “novo converso”. Apesar do vasto campo à frente, precisamos considerar um método específico e adequado para discipular os “discipulados”.
Conclusão
Procuramos com essa breve reflexão destacar que o cenário para o discipulado não apresenta só desafios. Como vimos, as pessoas continuam com dilemas pessoais e vazio espiritual que só serão sanados e supridos pelo evangelho. Outras pessoas/ovelhas, espalhadas por diversos apriscos estão morrendo de inanição por falta de algo mais sólido a ser ofertado. Enxergamos nessas situações oportunidades para o discipulado. Essas oportunidades serão bem aproveitadas considerando os relacionamentos como meio, bem como uma abordagem menos coerciva e engessada, sendo mais empática e personalizada.
Além das oportunidades e meios para o discipulado apresentados aqui, encerramos destacando algumas declarações inspiradas que possibilitam olharmos para o presente/futuro com otimismo. Lembremos que (1) “Todos os recursos do Céu estão à disposição dos que procuram salvar os perdidos”;[21] (2) “A grande obra do evangelho não deverá encerrar-se com menor manifestação do poder de Deus do que a que assinalou o seu início”;[22] e (3) “Muitos estão no limiar do reino, esperando somente serem recolhidos”.[23]Permitam-me parafrasear esta última declaração: muitos pós-modernos estão no limiar do reino, esperando apenas serem discipulados.
Referências
[1] Kleber O. Gonçalves, The challenge of the postmodern condition to Adventist mission in South America, p.6. Disponível em: https://digitalcommons.andrews.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1068&context=jams.
[2] Mário Veloso, Atos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2010), p.9.
[3] Ibid.
[4] Ellen G. White, Paulo o apóstolo da fé e da coragem, (Campinas, SP: Certeza Editorial, 2004), p.14,15.
[5] Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, 22ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p.822.
[6] Abigail Doukham, Como falar com pós-modernos? In: Rodrigo Follis; Allan Novaes; Marcelo Dias (Orgs) Sociologia e Adventismo (Engenheiro Coelho, SP: UNASPRESS, 2015), p.223.
[7] Ibid.
[8] Kleber O. Gonçalves, The challenge of the postmodern condition to Adventist mission in South America, p.13.
[9] Gorden R. Doss, The challenge of adventist discipleship. Disponível em: https://digitalcommons.andrews.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1341&context=jams
[10] Walmir Rosa, Igreja essencial (São Paulo, 2013 ), p.154.
[11] Ibid., p.153.
[12] Craig Ott; Gene Wilson, Plantação global de igrejas: princípios bíblicos e as melhores estratégias de multiplicação, (Curitiba: Editora Esperança, 2013), p.243.
[13] Russell Burrill, Como reavivar a igreja do século 21. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), p.162.
[14] Ellen G. White, A Ciência do bom viver, 10ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), p.143.
[15] Doutura em Filosofia pela Nanterre University (França) e mestre em Filosofia pela Sorbone University (França).
[16] Abigail Doukham, Como falar com pós-modernos?, p.227.
[17] Ibid.
[18] Ibid., p.228.
[19] Earle E. Cairns, O cristianismo através dos séculos, 3ª ed. (São Paulo, SP: Vida Nova, 2008), p.33.
[20] Ibid.
[21] Ellen G. White, Parábolas de Jesus, 15ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), p.197.
[22] Ellen G. White, O Grande Confliro, 43ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p.611.
[23] Ellen G. White, Atos dos Apóstolos, 9ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p.109.
Artigo disponível originalmente em:
http://deptos.adventistas.org.s3.amazonaws.com/ministerial/portal-pastor/pt/Artigos/Discipulado%20na%20pós-modernidade.docx